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Mais um absurdo com o dinheiro público. Codevasf tem descontrole nas compras e máquinas paradas

Companhia ignorou avisos e fez licitações mesmo após alerta de irregularidades, ao menos de 2016 a 2020. Dinheiro é de emendas parlamentares

Adaptações: Alexandre Torres

Guará News

Tratores doados pela Codevasf estacionados na superintendência regional da CONAB em Goiás - Goiânia (GO) 11/05/2021
Fotos: Vinícius Schmidt/Metrópoles
Enquanto o governo federal tem usado verba do denominado orçamento secreto para contemplar base e aliados com direcionamento de emendas parlamentares, a Controladoria-Geral da União (CGU) apontou uma série de irregularidades, ocorridas ao menos desde 2016, em licitações realizadas pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) com dinheiro, justamente, do instrumento usado por bancadas ou políticos individuais para atender necessidades de estados e municípios.

Boa parte dos problemas apontados no uso de recursos abrange a compra de tratores, instrumentos agrícolas e equipamentos pesados – como retroescavadeiras –, que são destaque no esquema de destinação de verbas sem transparência identificado pelo jornal O Estado de S. Paulo, no que vem sendo chamado de “tratoraço”, organizado pela gestão Jair Bolsonaro.

Os erros identificados em quatro auditorias às quais segundo o órgão de controle da própria administração federal, forte desgoverno na aquisição dessas máquinas, com ausência de transparência nos processos, compras feitas com justificativas frágeis ou irregulares e maquinário parado, sem uso, em pátio da companhia por longo tempo.

O Estadão revelou que um mecanismo montado pelo governo federal, em parceria com parlamentares, criou uma espécie de orçamento paralelo que tem R$ 3 bilhões em emendas. A maior parte do montante foi direcionada para a compra de tratores e equipamentos agrícolas. Ao longo desta semana, Analisados uma série de relatórios da Controladoria-Geral da União sobre irregularidades encontradas na aquisição de retroescavadeiras e tratores pela Codevasf. Não se trata do mesmo tipo de emenda parlamentar do chamado orçamento secreto, mas sinaliza que o uso desse tipo de verba pública tem precedentes com sérias fragilidades identificadas.

Os relatórios apontam erros de várias administrações, como as de Dilma Rousseff (PT) e de Michel Temer (MDB), e incluem o mandato de Bolsonaro. Na atual gestão, foram identificadas, em 2019 e 2020, várias compras de maquinários sem justificativas viáveis; aquisições de retroescavadeiras e de tratores em quantidades bastante superiores ao comprado nos quatro anos anteriores somados; falta de clareza sobre a origem do dinheiro usado no processo de compra; máquinas com sinal de uso particular; e ao menos R$ 15,9 milhões em itens parados num pátio da companhia – vários além do prazo de garantia para os equipamentos.

As conclusões da CGU foram ignoradas pela Codevasf, apesar de terem sido realizadas antes mesmo de as licitações serem executadas – ou seja, os editais poderiam ter sido suspensos ou “corrigidos” após a Controladoria apontar as irregularidades. O órgão disse que as auditorias não podem paralisar o andamento do processo. As justificativas apresentadas pela companhia para dar continuidade aos processos se limitam a respostas genéricas – “incentivar a agricultura familiar” ou “beneficiar comunidades carentes”, sem objetividade – e se pautam, principalmente, no fato de o dinheiro ser fruto de “emendas impositivas”.

Essa alegação embasa ressalvas do órgão regulador em relação à atuação da companhia quando a verba se origina de emendas parlamentares. “A Codevasf tem atuado, nesta e em várias outras contratações semelhantes, como mero agente executor de recursos repassados, particularmente no caso de emendas parlamentares, abrindo mão de seu papel no planejamento da ação governamental, necessário para o cumprimento de sua missão institucional”, aponta a CGU, em um dos relatórios analisados .

140 retroescavadeiras

Um dos relatórios feitos pela CGU trata do edital para aquisição de 140 retroescavadeiras pela 3ª Superintendência Regional da Codevasf (3ª SR), que fica em Petrolina, Pernambuco. O certame foi realizado em setembro do ano passado.

A companhia deixou de apresentar, aponta a Controladoria, “estudo técnico preliminar ou justificativa formal para a publicação do edital”. O número de máquinas definido no edital é muito superior ao adquirido em períodos passados. Nos quatro anos anteriores à licitação – ou seja, entre 2016 (governo Dilma/Temer) e 2019 (já sob Bolsonaro) – a Codevasf/3ª SR licitou 54 unidades, o equivalente a uma média de 13,5 retroescavadeiras por ano.

Procurada, a Codevasf ressaltou que não há a obrigação de que sejam adquiridos todos os 140 itens. Até a presente data, contudo, a companhia já empenhou recursos e formalizou ordens de fornecimento para 87 retroescavadeiras – uma alta de 61,1% em relação à soma das compras nos quatro anos anteriores. Se as 140 acabarem adquiridas, isso representará aumento de 159,2%.

“Após o recebimento dos bens, a Companhia empreende diagnóstico da entidade beneficiária, que ocorre em regular processo administrativo que conta com criteriosa análise técnica e avaliação de conveniência socioeconômica”, prossegue a nota da empresa.

O dinheiro usado para a aquisição do maquinário tem origem em emendas parlamentares da bancada de Pernambuco (R$ 58,5 milhões) e emendas parlamentares individuais (R$ 10,3 milhões). Os três parlamentares que mais pediram retroescavadeiras, por meio de ofícios enviado à Codevasf, foram, respectivamente, o senador Jarbas Vasconcelos (MDB-PE), que solicitou 20 máquinas; e os deputados federais Augusto Coutinho (Solidariedade-PE) – 18; e Fernando Filho (DEM-PE), filho do senador e líder do Governo no Senado Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE) – 15 equipamentos.

O senador, pai de Fernando, indicou R$ 125 milhões do “orçamento paralelo”, segundo o Estadão.

Senadores e deputados tinham enviado ofícios para a aquisição de 72 retroescavadeiras. O número é pouco mais do que metade do publicado no edital da empresa. A Codevasf não soube responder à CGU o porquê de o edital ter solicitado mais equipamentos. Também procurada pelo Metrópoles para esclarecer o motivo, a companhia não se manifestou.

O certame chegou a ser adiado por cerca de 10 dias, após a Controladoria apontar as fragilidades. Após esse período, entretanto, a Codevasf deu prosseguimento ao processo para aquisição das 140 retroescavadeiras. A companhia alegou que os equipamentos seriam usados para a “construção de barreiros, recuperação de aguadas e desassoreamento de reservatórios”, mas não os especificou.

A licitação foi vencida pela empresa Sotreq, no valor de R$ 29,6 milhões, segundo a ata de registro de preços. Confira, a seguir, os documentos:

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Irregularidades se repetem

A ausência de justificativa para a compra de máquinas pela Codevasf se repete em pelo menos outras três licitações. Edital publicado em agosto do ano passado prevê a aquisição de 350 tratores agrícolas pela 3ª Superintendência Regional. A quantidade licitada é quase 35% superior à demanda parlamentar formalizada, e 2,5 vezes a quantidade adquirida no ano anterior. Os contratos alcançaram o valor total de R$ 32,2 milhões. Sobre as finalidades da contratação, verifica-se que foi parcial e genericamente descrita como “incentivar e desenvolver a agricultura familiar”.

“Não foram apresentados os levantamentos relativos a quantidades necessárias. Também não há indicação de como será feita a distribuição para os municípios e os agricultores, e os respectivos parlamentares representantes, o que pode indicar direcionamento do objeto do certame. Ainda, não há nos autos o documento do diagnóstico situacional das necessidades identificadas em cada comunidade. Não foram detalhados quais os benefícios específicos conquistados pelas comunidades com estas aquisições, tendo sido citados apenas pontos genéricos”, aponta a auditoria da CGU.

“Para a aquisição dos tratores agrícolas, os fundamentos de sua necessidade não foram documentados no processo licitatório, nem as justificativas da quantidade de 350 unidades. Há apenas a Nota Técnica n° 28/2020, de 07.05.2020, da qual se destaca: ‘Os parlamentares solicitaram via ofício a doação de equipamentos agrícolas, os quais foram levantados e definidos quantidades, considerando além das solicitações deste ano a média das aquisições dos últimos anos não foram anexados os ofícios e as diligências dos parlamentares com tais solicitações de tratores, a indicação nominal dos municípios, nem as referidas emendas parlamentares, o que torna o documento vago e impreciso’”, complementa a CGU no documento oficial de análise.

Também foram alvo da CGU outros dois pregões eletrônicos realizados em 2020, com dinheiro de emendas, para a aquisição de 93 máquinas de construção pesadas e caminhões, e 2.640 máquinas e implementos agrícolas, no valor total de R$ 59 milhões. A Controladoria concluiu haver divergências nas especificações de itens, falhas na estimativa de preços e ausência de justificativas fundamentadas para a necessidade das contratações.

Diante das irregularidades, a CGU recomendou à unidade a suspensão dos certames e a correção das inadequações apontadas. Apesar disso, a companhia, mais uma vez, ignorou os apontamentos e decidiu dar continuidade ao processo.

R$ 15,9 milhões parados no pátio

Também foi apurada a existência de grande quantidade de máquinas e equipamentos em um pátio da 1ª Superintendência Regional da Codevasf, localizado no Centro Integrado de Recursos Pesqueiros e Aquicultura de Gorutuba, que fica em Nova Porteirinha (MG). Durante a verificação in loco pela equipe da auditoria, em junho de 2019, foram encontrados 1.128 itens no local – inclusive tratores –, avaliados em R$ 15,9 milhões.

Segundo a CGU, falhas de planejamento e de execução da Codevasf têm provocado a longa permanência em estoque dos bens adquiridos. A permanência média é de 481 dias – 22 equipamentos largados no pátio há seis anos. Ou seja, os equipamentos são adquiridos e ficam parados por cerca de 1 ano e 4 meses. A demora na entrega aos beneficiários coloca em risco a integralidade dos maquinários, uma vez que poderão ser necessárias manutenções antes mesmo do primeiro uso.

“Verificou-se que os bens, em média, já seriam entregues aos beneficiários com os prazos de validade vencidos ou prestes a vencer, uma vez que o prazo contratual de garantia dos bens, normalmente, é de 12 ou 24 meses”, revela a CGU, que apontou ter encontrado, entre os itens em estoque, 648 reservatórios de água no pátio da Codevasf.

O órgão regulador destacou que a situação evidencia falhas nos processos e fluxos de contratação. “Apesar de o Sistema de Registro de Preços possibilitar a compra parcelada, o que poderia gerar a diminuição dos custos com manutenção de estoque e vigilância, bem como poderia diminuir os riscos de perda de objetos por prazo de validade ou deterioração, não foi isso que se verificou no pátio de Nova Porteirinha/MG, em agosto de 2019”, prossegue.

Outro problema foi encontrado em relação a tratores doados. Os veículos estavam parados nos espaços dos beneficiários. Um deles, doado à Associação de Pequenos Produtores e Trabalhadores Rurais de Riacho Fundo, Morro do Chapéu e Adjacências, estava sem a pintura da logomarca Doação Codevasf, que teria sido apagada. “Este fato indica uma possível intenção de se utilizar o equipamento em finalidade que não seja a prevista no processo de doação, em uma finalidade que não possua interesse público e por isso a intenção de descaracterizar o bem.”

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Outro lado

Procurada, a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba informou, inicialmente, que todos os apontamentos de órgãos de controle encaminhados à Codevasf em processos habituais de autoria são recepcionados e respondidos. “As indicações de aperfeiçoamento eventualmente apresentadas por esses órgãos são prontamente acatadas e integradas aos procedimentos da empresa”, afirmou.

Questionada, em seguida, sobre ter ignorado as recomendações da CGU sobre os processos licitatórios analisados, a Codevasf afirmou que as auditorias envolvem a apresentação de questionamentos por parte dos órgãos de controle e de respostas do órgão demandado, até que se chegue a um entendimento. “Essas auditorias não paralisam o andamento dos processos auditados. As indicações de aperfeiçoamento eventualmente apresentadas por esses órgãos são acatadas e integradas aos procedimentos da empresa após parecer definitivo.”

Já sobre os itens parados no pátio da Codevasf/1ª, em Nova Porteirinha, ressaltou que a transferência desses bens requer prévio processo administrativo, que envolve a produção de estudos e relatórios, visitas técnicas, autorizações e publicações no Diário Oficial da União, para que seja assegurada transparência no cumprimento da legislação. “Esses procedimentos demandam tempo e requerem a permanência dos bens em local de armazenamento.”

“Os bens de 2019 foram doados aos beneficiários. Neste momento, diversos outros itens estão armazenados nesse e em outros depósitos da Codevasf. A dinâmica dos processos de doação impõe grande rotatividade. A aquisição e a doação dos bens ocorre de forma simultânea”, prosseguiu.