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Burburinho na UNB. Mestranda fala para brancos não se matricularem em disciplina pensada para negros

A solicitação gerou estranhamento entre interessados. A mestranda Naiara Lira explicou o porquê do direcionamento

Universidade de Brasília - UnB
RAFAELA FELICCIANO/METRÓPOLES
A divulgação de uma disciplina ofertada pelo Departamento de Artes Cênicas da Universidade de Brasília (UnB) despertou atenção e gerou burburinho entre interessados. Tudo porque a mestranda que dará a matéria, Naiara Lira, 35 anos, fez um chamamento específico para negros de qualquer curso da instituição, pedindo explicitamente que brancos não se matriculassem.

“Como estou pesquisando o teatro negro, é lógico que preciso de pessoas negras para poder trabalhar. O pessoal do departamento, tanto estudantes quanto professores, é bastante compreensivo. Esse pedido é para pessoas não aparecerem desavisadas, achando que é matéria teórica ou que vão poder aprender alguma coisa sobre negritude, sendo que é ao contrário: eu que estou buscando aprender”, disse Naiara. “Ouvi dizer que teve gente reclamando, mas eu preciso viabilizar minha pesquisa e é para isso que a disciplina existe.”

São ofertadas 20 vagas para a disciplina chamada Investigação da Memória e Identidade Negras para a Cena, que terá aulas remotas toda terça e quinta-feira, das 10h às 12h. Ela é optativa, ou seja, os alunos da graduação não são obrigados a cursá-la. A matéria contará como prática de docência, necessária para o mestrado de Naiara. A professora da UnB Sulian Vieira é a responsável pela supervisão.

O ingresso de brancos, embora desencorajado, não está vetado. “Não posso e não vou proibir ninguém de se matricular, mas, se eu tiver uma maioria de pessoas não negras, a pesquisa será inviabilizada. É um pedido legítimo. Não sou professora, sou mestranda, e a disciplina surge da necessidade de investigação e observação de pessoas negras em cena”, afirmou Naiara.

Sulian concorda com a solicitação feita pela mestranda e explica: “É absolutamente necessário, se não estaria perdendo o foco do trabalho dela. Não é uma proibição, é um apelo, digamos, ao bom senso”. A professora disse entender que o tema é delicado e que foi discutido com a coordenação da graduação e da pós. “Caso a gente tenha algum problema, tudo pode ser reavaliado.”

A docente declarou que nenhuma reclamação sobre a matéria foi formalizada na Ouvidoria, canal por meio do qual são recebidas manifestações e repassadas aos responsáveis para que se posicionem oficialmente.

“Equívoco”

Procurado pela coluna, o professor da UnB Nelson Inocêncio, referência em artes e culturas negras, considera que o tema da matéria é válido, mas acredita que a maneira de anunciar o direcionamento do curso tenha sido equivocada.

“Se a disciplina foi pensada para um perfil específico, o próprio Departamento de Artes Cênicas deveria ter desenvolvido estratégias para esse apelo. Aluno não tem autoridade institucional para tomar essas decisões”, avaliou.

Início

Segundo a professora Sulian, temáticas relacionadas à memória e à identidade negras devem ser estimuladas nas aulas a partir de exercícios teatrais e técnicas performativas. O curso será on-line em razão da pandemia do novo coronavírus. As matrículas vão até 12 de janeiro. A docente disse que, se houver imprevistos, o período para ingresso poderá ser estendido.

“A Naiara ainda terá de lidar com outro desafio, que é o contexto virtual: como criar um ambiente acolhedor para discutir questões tão delicadas e produzir esteticamente dentro de uma linguagem que preza pela presencialidade? A gente espera que seja uma oportunidade muito produtiva para as pessoas que se identificam, esteticamente, de uma forma geral. Percebemos bastante valor na proposta dela”, assinalou Sulian.

O tema da dissertação, segundo Naiara, surgiu após a estreia da peça A Empregada da Sufragista, produzida e estrelada por mulheres. “A gente fez uma temporada só, mas todos os recordes da casa foram quebrados. E, aí, foi me despertando essa ideia de entender o que acontece quando o processo artístico tem só mulheres negras. Para a minha pesquisa de mestrado, resolvi expandir e abarcar homens negros”, contou. Naiara dirigiu a peça e escreveu o roteiro com Gabriela Porfírio. As atrizes Tainá Cary, Milca Orrico e Karine Araújo atuaram e Maboh fez a trilha sonora.

Naiara é formada em letras e atua na música, no teatro e em produção cultural. Ela contou que voltou à universidade a fim de aprimorar o trabalho que desenvolve no Duo Camboatá, grupo de performance que mistura música, poesia e interpretação. Em 2020, a artista ficou em primeiro lugar na categoria produção cultural dos Prêmios FAC Brasília 60 anos.

UnB

A Administração Superior da UnB informou, em nota, que as disciplinas de prática docente, como é a intitulada Investigação da Memória e Identidade Negras para a Cena, são exigências da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para a formação de mestres e doutores.

“Mestrandos precisam cursar uma dessas disciplinas, e doutorandos, duas. A matéria é ofertada por meio dos sistemas oficiais da universidade pelo professor(a) orientador(a), responsável pelo programa da disciplina. O docente também acompanha todas as atividades pedagógicas realizadas pelo pós-graduando”, assinalou.

Adaptações: Alexandre Torres

Guará News