Segundo especialistas, silêncio sobre crime costuma ser comum na família após perda, mas é prejudicial no luto. Crianças e adolescentes têm direito a acompanhamento psicológico gratuito; saiba como.
Por Carolina Cruz
Adaptações: Alexandre Torres
Guará News
Registro da série órfãos do feminicídio, da TV Globo — Foto: TV Globo/Reprodução
Aos 4 anos de idade, a filha de Shirley Rúbia Gertrudes, de 39 anos, viu o pai matando a mãe, dentro de um hospital, quando o casal acompanhava a criança em uma consulta médica. Naquele dia, a menina e o irmão adolescente passaram a vivenciar o luto que impacta 145 órfãos que o feminicídio deixou nos últimos seis anos no Distrito Federal, segundo dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP).
A tia dos meninos, Cristina Gertrudes, conta que até hoje “é difícil tocar no assunto”, até mesmo em família. “Não consigo falar sobre ela, porque desabo”, diz.
Especialistas afirmam que “a morte como um assunto proibido é uma das maiores dificuldades” entre os familiares, e que os órfãos precisam de acompanhamento psicológico. Em Brasília, o serviço pode ser buscado de forma gratuita (saiba mais abaixo).
Um levantamento da pasta mostra que foram 116 vítimas de feminicídio entre março de 2015 a março de 2021, 25% delas foram mortas pelo pai de seus filhos.
A vida após o feminicídio
Depois da morte de Shirley, o filho mais velho dela foi quem assumiu o papel de pai da irmã caçula. Aos 18 anos, ele e a menina moram em uma casa ao lado da residência da avó, que presta apoio aos netos.
“Foi uma escolha dele. Toda a vida quem cuidava da irmã era ele mesmo. Muito guerreiro”, diz a tia.
Cristina diz que Shirley é uma memória constante para a menina. “Teve um dia que ela estava aqui em casa, tomando um sorvete, e falou: ‘olha, era assim que minha mãe tomava sorvete’, imitando ela”, lembra.
Shirley Rúbia, vítima de feminicídio no DF — Foto: Facebook/Reprodução
Para Cristina, a dificuldade de falar sobre a perda é maior com a sobrinha pequena. No entanto, com o adolescente isso também ocorre “às vezes”.
“Tem dia que a gente conversa. Tem dia que a gente tá mais forte, tem dia que não”, diz a tia.
Maturidade precoce
Parentes e amigos de Shirley se uniram para pagar terapia aos órfãos. A tia conta que a ajuda só é possível porque a irmã era muito querida.
A vítima participava de ações sociais e tinha muitos amigos. “Ela ajudou muita gente, tanto que o que ela plantou os filhos dela está colhendo hoje”, diz.
A família está entre os que não foram orientados sobre o programa Pró-vítima, do Governo do Distrito Federal. Um trabalho de apoio psicológico para os filhos das vítimas de feminicídio.
Um dos psicólogos que atendem crianças e adolescentes no Pró-vítima é Ailton Sousa. Segundo ele, o processo de perda da mãe, em um crime de feminicídio, carrega “dois lutos”.
“Tem o luto da perda e o da decepção, porque na maioria das vezes quem cometeu esse crime era a figura de proteção [o pai], que acaba violando essa imagem. O luto é pela falta da mãe e a revolta de saber quem foi”, diz o psicólogo.
Fotos de Shirley Rúbia Gertrudes na entrada da capela do Cemitério Campo da Esperança, da Asa Sul, em Brasília — Foto: Afonso Ferreira/G1
Segundo a Secretaria de Segurança Pública, entre as 116 vítimas de feminicídio nos últimos seis anos, no Distrito federal, 85% foram mortas por quem tinha um relacionamento afetivo, sendo ex ou atual. Estão entre eles, homens que não eram pais biológicos, mas estavam no papel de padrasto.
“Uma criança muito nova absorve menos [a decepção], mas adolescentes têm uma revolta muito grande”, diz o psicólogo.
Ao mesmo tempo, segundo Ailton Sousa, os filhos acabam amadurecendo mais rápido. “A vida obriga eles a ter uma estrutura que foge um pouco da maturação, se sentem obrigados a proteger os irmãos, se apegam a essa responsabilidade”.