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Meninas e adolescentes sofrem em maior número, cultura machista tem que acabar.

Meninas e adolescentes sofrem em maior número, cultura machista tem que acabar.

A descoberta do amor e da dor é muitas vezes simultânea. Ana* se apaixonou pela primeira vez aos 14 anos e, pouco depois, começou a apanhar do companheiro, uma década mais velho. “A gente sempre acha que é possível transformar as pessoas. Eu era uma menina e tentei mudá-lo durante mais de 10 anos. Não consegui”, conta a cabeleireira. Para muitas mulheres, a violência começa na adolescência e perdura por toda a vida. Outras conseguem vencer o ciclo de brutalidade e recomeçar.

Ana e o companheiro eram primos legítimos e tiveram o apoio da família para se casarem logo após a jovem completar 15. O casal foi morar nos fundos do terreno da sogra de Ana, em Ceilândia. “Ele bebia muito, usava drogas. Logo, começou a violência psicológica, com gritos e ameaças. Não demorou até a primeira agressão física”, relembra.

O filho primogênito do casal morreu de meningite aos 5 anos, e a revolta potencializou o comportamento violento do agressor. “Ele raramente deixava marcas, mas, um dia, me deu um soco muito forte e fiquei com o olho roxo. Nesse dia, eu criei coragem e liguei para a polícia, mas ninguém apareceu, conta”.

Só em 2018, mais de 10 anos após a primeira agressão, Ana criou coragem para procurar uma delegacia. Obteve uma medida protetiva de urgência que, em tese, impediria a aproximação de seu algoz. “Ele desrespeitou a determinação e apareceu fazendo ameaças no meu trabalho. Perdi o emprego e a minha paz”. Sem dinheiro, Ana cedeu às tentativas de reaproximação do marido diante das promessas de uma nova vida.

Três meses depois, o marido a trancou em casa durante um dia, em meio a ameaças de matá-la com os dois filhos. Foi quando uma amiga levou Ana a uma reunião do projeto Força Ativa da Mulher, em Samambaia. A organização oferece apoio a mulheres vítimas de violência e ajudou a cabeleireira a se reerguer. “Ainda recebo ameaças. Outro dia, ele me enviou um áudio batendo o facão na mesa. Eu via reportagens de feminicídio e sempre pensava que eu poderia ser a próxima. Isso me deixava com medo de abandoná-lo. Mas agora me sinto forte. Essa rotina de medo finalmente acabou”, comemora Ana.

Os registros de crimes enquadrados na Lei Maria da Penha com vítimas abaixo de 18 anos representam 7% das 14.985 ocorrências do ano passado. Em 2017, as delegacias do DF fizeram 14.806 ocorrências enquadradas na lei, das quais 8% tinham crianças e adolescentes como vítimas — o equivalente a 1.184 casos. As estatísticas mais atuais não trazem detalhamento de idade das vítimas crianças e adolescentes. Mas, até 2016, havia uma descrição mais minuciosa dos dados.

Naquele ano, das 14.812 ocorrências de violência doméstica, 76 foram de vítimas de até cinco anos. Outras 132 tinham entre 6 e 11 anos. Houve ainda 354 registros de Lei Maria da Penha com vítimas de 12 a 15 anos e 403 registros de vítimas de 16 a 17. Ou seja: entre as vítimas do sexo feminino com menos de 18 anos, as adolescentes são maioria.

Fabriziane Zapata, juíza: “A violência de gênero começa muito cedo. A formação de estereótipos de gênero se concretiza quando a criança tem 7 ou 8 anos e já expressa a ideia de que a menina vale menos, que é inferior por não ter as mesmas habilidades dos meninos. Os garotos, por sua vez, já começam a xingar os outros de mulherzinha, de afeminado, e tudo isso é naturalizado na sociedade.”
Machismo

A cultura machista é um dos fatores que explica a violência contra a mulher desde a primeira infância. Coordenadora do Núcleo Judiciário da Mulher e titular da Vara de Violência Doméstica e Familiar do Riacho Fundo, a juíza Fabriziane Figueiredo Stellet Zapata afirma que essa mentalidade se consolida antes dos 10 anos.

“A violência de gênero começa muito cedo. A formação de estereótipos de gênero se concretiza quando a criança tem 7 ou 8 anos e já expressa a ideia de que a menina vale menos, que é inferior por não ter as mesmas habilidades dos meninos. Os garotos, por sua vez, já começam a xingar os outros de mulherzinha, de afeminado, e tudo isso é naturalizado na sociedade. A gente só percebe quando começa a estudar sobre gênero”, explica a magistrada.

O processo de educação, em boa parte das famílias, ainda faz distinções. “As meninas são criadas para serem doces, para se mostrarem frágeis, com brincadeiras domésticas. Existem diferenças que são naturais e outras que são socialmente forjadas e, se a gente não combater isso, vamos perpetuar as desigualdades que existem”, argumenta Fabriziane. “Do lado dos meninos, a sociedade está sempre incentivando eles a serem machos. Há uma negação de todas as características do feminino: não podem chorar, não podem levar desaforo para casa, não podem brincar de casinha, de boneca. Isso leva ao aprofundamento de desigualdades”, acrescenta a juíza.

Fabriziane Zapata aponta ainda um problema cada vez mais recorrente na era das redes sociais e dos aplicativos de mensagens. “Vemos cada vez mais casos de namoros abusivos, que se aprofundam nos estereótipos de gênero e na violência contra a menina adolescente. Isso parte muitas vezes do envio dos chamados nudes, que são imagens íntimas, muitas vezes com conteúdo sexual. As meninas enviam esse tipo de mensagem e depois viram alvo de chantagens”, revela Fabriziane. “Quando isso vaza, a menina é xingada e o menino é vangloriado. É extremamente cruel. Isso gera muitos casos de automutilação e de tentativa de suicídio”.

Rotina de medo

O medo fez com que Lara, 14 anos, escondesse as agressões do companheiro, apenas dois anos mais velho. Depois de poucos meses de relacionamento, a moradora da Estrutural engravidou, mas seguiu submetida à rotina de violência. “O namorado ameaçava que, se houvesse qualquer denúncia, ele não registraria o bebê. E esse era o grande temor da vítima, ter um filho sem o nome do pai no documento”, conta o conselheiro tutelar da região, Clóvis Júnior. Os conselhos tutelares acompanham de perto boa parte dos casos de violência doméstica: até mesmo quando a criança não é a vítima direta de agressão, eles são acionados para acompanhar a situação dos filhos das mulheres vitimadas.

Atuante em Samambaia, o conselheiro tutelar Abel Gramacho conta que, em muitos casos, a vítima de violência doméstica e o agressor são adolescentes. “Quando isso acontece, os rapazes são enquadrados em ato infracional análogo à Lei Maria da Penha. Acompanhei um caso em que a menina de 16 anos e até o pai dela foram agredidos pelo namorado, de 17. Encaminhamos à polícia e ele foi apreendido”, relembra Gramacho.

*Os nomes das vítimas são fictícios

Ocorrências enquadradas na Lei Maria da Penha

1º trimestre de 2019
3.752 ocorrências, das quais
262 com vítimas crianças e adolescentes (7% do total)

2018:
14.985 
ocorrências, das quais
1.048 com vítimas crianças e adolescentes (7% do total)

2017:
14.806
 ocorrências, das quais
1.184 com vítimas crianças e adolescentes (8% do total)

2016
14.156
 ocorrências, das quais
887 com vítimas crianças e adolescentes (6,2% do total)

2015
14.812 
ocorrências, das quais
965 com vítimas crianças e adolescentes (6,5% do total)

Julgamento pendente

De acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o TJDFT tinha, no ano passado, 15.624 casos de violência doméstica e 115 de feminicídio pendentes de julgamento. Em 2018, a Corte aplicou 10.164 medidas protetivas. 

Créditos: Correio Braziliense
Adaptações:
Alexandre Torres
Guará News