Campeã de fisiculturismo conta como venceu o preconceito
Aos 41 anos, a campeã de fisiculturismo Carla Barbosa celebra a afirmação do poder da identidade de mulher negra brasileira. Da infância ao início da idade adulta, no entanto, ela sofreu duros golpes do racismo
Nos tempos de escola, ela foi chamada de “neguinha feia, neguinha burra”. Mais tarde, durante a faculdade de letras, teve de aturar a antipatia da família de um namorado que não a recebia bem por causa da cor da pele. Desde cedo, ainda na infância dentro de casa, viu-se obrigada a rejeitar a própria identidade racial para se adequar a padrões de beleza diversos. A repressão pelo preconceito a incomodou por longos anos, mas a virada ocorreu na idade adulta, quando tomou consciência do significado e do poder intrínsecos a uma mulher negra brasileira. Hoje, aos 41 anos, Carla Barbosa celebra uma fase vitoriosa, com a conquista de troféus em concursos de fisiculturismo, e, pelas redes sociais, motiva mulheres de todo o país a se empoderarem contra o racismo e o machismo.
“Na escola, a minha reação era de isolamento. Eu não sabia como agir e me sentia atacada, reprimida. Em casa, não havia diálogos sobre o assunto, como consciência da cor, autoafirmação. No relacionamento que tive, a reação foi de indignação. Eu não aceitava nem compreendia que, em pleno século 21, ainda existiam pessoas que me julgavam pela cor da pele”, conta Carla.
Moradora da Asa Norte e integrante de uma “típica família brasiliense de classe média”, ela recorda a infância como um período tranquilo, quando ainda não percebia a diferenciação entre as pessoas. Durante a adolescência, no entanto, a autoestima se encontrava em frangalhos. “Eu me percebia feia. Meu pai, negro, e minha mãe, índia, com os cabelos muito lisos. Ouvia dentro de casa, do meu próprio pai, que meu cabelo era ruim. Eu fazia escova e touca, usava métodos químicos de alisamento”, lembra.
O despertar da consciência sobre a própria identidade aconteceu quase que por acaso. Aos 24 anos, em uma rotineira visita ao salão para alisar os cabelos, Carla foi surpreendida pela cabeleireira. “Ela me disse: ‘por que você não deixa o seu cabelo natural? Você é tão linda, seus cachos são maravilhosos!” Naquele instante, me olhei no espelho e comecei a me reconhecer como mulher, feminina, negra, dona de mim. Cortei os cabelos, e eles voltaram a crescer de forma natural. Assumir os cachos foi o primeiro passo para um processo de empoderamento”, comenta.
Com um novo olhar sobre o mundo e a percepção mais aguçada, Carla se dava conta da velada exigência de que deveria sempre se esforçar mais do que os colegas de trabalho. “Eu tinha de ser melhor do que qualquer pessoa branca. A cor da minha pele poderia justificar um erro. Colegas de faculdade e de trabalho diziam: ‘você precisa ser duplamente melhor do que um branco para fazer valer a sua competência, porque infelizmente há racismo velado’”.
A vida de atleta lhe proporcionou elevação da autoestima e visibilidade. Nas redes sociais, não se intimida e participa de debates calorosos acerca de questões raciais e de machismo. “O processo de empoderamento de uma mulher negra é bem mais complexo do que para uma mulher branca. O primeiro desafio é o da conscientização, reconhecer as origens, buscar informações. Hoje, o racismo não me afeta tanto, pois sei do meu valor. Mas reconheço que sou uma privilegiada. Certamente, uma mulher negra da periferia não tem tantas oportunidades como eu e sofre infinitamente mais”, pondera.
Apesar das máculas que o racismo lhe provoca, em experiências próprias ou no compartilhamento de vivências com outras mulheres, Carla olha o futuro com otimismo e acredita que as novas gerações poderão experimentar relações sociais mais nobres. “A mudança vem da educação. É durante a formação do indivíduo que podemos construir valores, consciência, respeito, dignidade, amor e respeito ao próximo. Percebo que essa nova geração que nasceu na era digital está muito mais consciente do próprio espaço na sociedade e se unindo àqueles com ideias afins na construção de um mundo mais justo e harmônico”, reflete.
Segundo a fisiculturista, mais do que a busca por troféus, a trajetória no esporte tem um sentido de profundidade maior no ativismo. “A cada vitória, minha imagem se fortalece e aproveito para não somente falar da vida de atleta, mas também de outros temas. Vou continuar usando a minha imagem para fortalecer e ajudar outras mulheres. As redes sociais colaboraram bastante. Recebo muitos feedbacks.”
Temporada vencedora
A temporada 2019 foi marcante para Carla Barbosa. Após quatro anos de dedicação ao fisiculturismo, os resultados que buscava finalmente apareceram. No mês de setembro, em Alagoas, ela participou de um campeonato nacional chancelado pela World Bodybuilding & Physique Sport Federation (WBPF). Sagrou-se campeã do concurso de Miss Bikini por altura (acima de 1,70m) e vice-campeã master (acima de 35 anos). Em outubro, na capital paulista, disputou o Sul-Americano pela mesma entidade e venceu as duas categorias em que competiu.
Em seguida, a fisiculturista brasiliense embarcou para Natal, no Rio Grande do Norte, onde participou de um campeonato da IFBB Pro League, federação internacional que chegou ao Brasil em 2018 e tem exclusividade nos direitos de classificação para os célebres Arnold Classic e Olympia – os maiores do fisiculturismo mundial. Na capital potiguar, Carla ficou em segundo lugar do Excalibur na categoria master. “Começo a alcançar uma maturidade muscular com mais qualidade para disputas maiores. O fisiculturismo é muito mais do que o físico, é o controle da mente para não fraquejar, para não cair em tentações, manter-se firme no propósito.”
Nos concursos de Miss Bikini, as competidoras são avaliadas segundo os critérios de simetria, forma física e desempenho posando no palco com uso de salto. As rotinas das apresentações incluem pose de frente, transição e pose de costas. “Estar em um palco é o momento de qualquer atleta de fisiculturismo. São muitos meses de preparação, dieta, treinos, disciplina e abdicações para chegar à forma ideal. A cada ano, as atletas elevam o nível, pois é um esporte de amadurecimento. Um corpo de competição demora para nascer. Estou desde 2015 em dieta e treinos mais regrados”, diz a competidora.
Os resultados são frutos de uma rotina de dedicação e planejamento, acompanhada por um preparador físico personalizado e um nutricionista. Quando as competições ainda estão distantes, ocorrem treinos de musculação e uma atividade aeróbica diariamente. A dieta é trocada a cada 45 dias. Próximo ao campeonato, a preparação fica mais intensa, com três atividades aeróbicas diárias – sendo uma em jejum –, e o cardápio pode sofrer alterações semanais ou a cada três dias, conforme a necessidade corporal. “Nesse período, tudo é medido: a quantidade de sal ingerida, a água, horas de sono, controle do peso”, conta.
Os recentes bons resultados motivaram Carla a buscar patrocinadores para contribuir na manutenção da rotina de competições. Na atual temporada, as despesas foram pagas por conta própria. “O custo de um corpo para competição é bem alto. Neste ano, quebrei meu cofrinho, mas não me arrependo”, afirma. Os troféus conquistados na turnê de campeonatos lhe renderam convites para ensaios fotográficos e participação em outros eventos. “Tive uma visibilidade que não esperava. Fui convidada para ser jurada no Miss Transex 25 anos, o que me trará muito espaço na mídia. Tem sido um excelente ano.”
Além da carreira esportiva, Carla Barbosa se dedica ao mercado da moda, como produtora, modelo e, mais recentemente, estilista. “Desenvolvi uma coleção de moda fitness inspirada na minha experiência. Algumas peças estão em produção”, conta. Com a pele preta, cachinhos revoltos, consciência desperta e músculos fortes, a atleta brasiliense está pronta para conquistar o mundo.