Brasília sexagenária: conheça a história da primeira quadra da capital
A primeira quadra de Brasília completa 60 anos e abre série de reportagens sobre os prédios da capital que completam seis décadas. Moradores, a maioria idosos, relembram histórias que marcaram a construção do Distrito Federal
São 60 anos de histórias. Uma trajetória que começou a ser escrita antes da inauguração de Brasília. A 108 Sul, a primeira superquadra do Plano Piloto, celebra em fevereiro o sexagenário aniversário. Poucos blocos seguem o visual original, mas ainda é possível ver os traços de Oscar Niemeyer no conjunto habitacional que começou a ser erguido em 1958. Muitos apartamentos passaram por reformas, assim como fachadas. Além disso, a quadra carrega memórias de quem cresceu em meio ao cerrado.
Com fotos em preto e branco, a bancária aposentada Regina Faleiro, 67 anos, conta lembranças da infância e adolescência na 108. Ela, que veio de Minas Gerais com os pais, chegou a Brasília em 1961. A moradia era um apartamento funcional no Bloco J, que o pai ocupou por trabalhar no Ministério de Minas e Energia. “Os apartamentos funcionais eram o atrativo. Nem todos os funcionários queriam largar as suas cidades e o conforto de casa para vir se aventurar em Brasília. O apartamento era uma vantagem”, comenta.
Regina cresceu brincando nos pilotis. Estudava ao lado do bloco da família, na Escola Classe 108 Sul, e, à tarde, frequentava a Escola Parque. Aos fins de semana, curtia o Clube Vizinhança. Tudo nos arredores. “Foi uma infância maravilhosa. A gente podia ficar até mais tarde embaixo do bloco, não tinha perigo. Eu ia andando à escola, ao comércio, à escola parque”, recorda. Nas fotos, ela mostra os coqueiros que se tornaram cenários para as fotos com a família. O amor pelo local é tanto que Regina, após se casar, se mudou, mas não demorou para voltar. A bancária comprou um apartamento no Bloco I, onde vive até hoje. “Para mim, é um privilégio morar aqui. Temos tudo pertinho, tem metrô também. É uma quadra excelente e tem valor sentimental muito grande”, ressalta.
A 108 Sul foi a primeira quadra residencial a ser concluída em Brasília. O professor e arquiteto da Universidade de Brasília (UnB) José Carlos Córdova Coutinho explica que as construções eram feitas por institutos de previdência e que existia uma cerca competição de quem entregava as fundações iniciais e as lajes, por exemplo.
Segundo o especialista, o primeiro prédio a ser construído na Asa Sul fica na 106, mas a conclusão da 108 é pioneira. “Foi um dos projetos que materializaram a ideia da superquadra, como concebido por Lucio Costa. Ele e Oscar Niemeyer tinham uma proximidade muito grande. Na 108, o Oscar interpreta exatamente o que o Lucio Costa pretendia como superquadra.” As quadras 308, 107 e 307 Sul formam a unidade de vizinhança mais completa de Brasília. “Têm igreja, clube, comércio, parquinho e escola”, explica José Carlos.
A técnica de necropsia Mônica Quintas, 57, revela as histórias e lembranças vividas com a mãe, Isa Vasquintas, 90, uma das mais antigas da 108 Sul. Ela veio para Brasília com Mônica na barriga. O pai, jornalista, chegou antes, a trabalho. Na superquadra, Mônica deu os primeiros passos. “Foi uma infância maravilhosa. Aqui em cima, tinha uma creche de freiras. A gente tocava a campainha e saía correndo. Havia muita diversão”, conta a moradora.
Reforma
No início, os apartamentos eram funcionais, e os moradores, na maioria, funcionários públicos. Os imóveis só passaram a ser vendidos em 1966, segundo o Sindicato da Habitação do Distrito Federal (Secovi). À época, eles custavam, em média, Cr$ 19.610.000 — R$ 284.941,66, em valores atuais —, podendo ser financiados em até 30 anos, a juros de 2% ao ano. As características não são mais as mesmas. Mônica, com o tempo, reformou o imóvel. “Tivemos de mudar. São 60 anos. Se não reforçasse, cairia tudo”, justificou.
O diretor do Secovi, Ovídio Maia, explica que, apesar de se tratar de uma quadra histórica, a média de preços dos apartamentos na 108 Sul é parecida com as demais quadras da Asa Sul. Muitos imóveis precisam de revitalização.
História e preservação
A quadra guarda riquezas culturais e históricas. Muitas delas, na banca de Lourivaldo Soares Marques, 82, a primeira da cidade. À época, o então pintor saiu de São Paulo para trabalhar na capital, mas, ao ter o material roubado, viu na venda de jornais oportunidade de sustento. “Cheguei à rua da Igrejinha e senti que tinha muito movimento. Havia umas 10 lojas funcionando, e resolvi montar uma banquinha ali. Eu vendia os jornais em cima de um caixote”, relembra.